A escatologia cristã é um campo fértil de debates, interpretações e tradições que atravessaram séculos. Entre as visões mais discutidas estão o pré-milenismo e o pré-tribulacionismo, hoje amplamente associados às correntes dispensacionalistas modernas, mas que possuem raízes bem mais antigas do que muitos imaginam. Embora o pré-tribulacionismo como sistema organizado só tenha sido desenvolvido séculos depois, diversos elementos fundamentais dessa visão já podem ser detectados nos escritos dos Pais da Igreja, especialmente entre os séculos I e IV, antes mesmo da Idade Média. Já o pré-milenismo, por sua vez, era a escatologia dominante da igreja primitiva, conhecido como quiliasmo — a crença literal de que Cristo voltará antes do Milênio para reinar fisicamente sobre a terra.
Ao examinarmos os escritos dos primeiros cristãos, percebemos que eles interpretavam a profecia de Apocalipse 20 de maneira literal. Para eles, o Reino Milenar não era uma metáfora espiritual nem uma realidade presente; era um período futuro, físico, terreno e restaurador. Um dos primeiros testemunhos é o de Papías, discípulo do apóstolo João, que afirma — em registro preservado por Eusébio — que haverá mil anos após a ressurreição dos mortos, quando Cristo estabelecerá Seu reino de forma visível e concreta. Sua proximidade com o ambiente apostólico dá grande peso à sua interpretação.
Na mesma linha, Justino, o Mártir, um dos maiores apologistas do século II, declara com clareza admirável que “haverá uma ressurreição da carne, e Jerusalém será reconstruída e habitada por mil anos”. Essa citação de seu Diálogo com Trifo demonstra não apenas sua defesa do milênio literal, mas também a compreensão de que o retorno de Cristo inauguraria este período. Justino ainda reconhece que alguns cristãos discordavam, mas faz questão de enfatizar que ele e “muitos outros” mantinham essa posição — o que reforça seu caráter predominante na igreja primitiva.
Outro grande nome que consolidou a visão pré-milenista foi Irineu de Lião, discípulo de Policarpo e neto espiritual de João. Em Contra Heresias, Irineu descreve a cronologia escatológica com riqueza de detalhes: o surgimento do Anticristo, os três anos e meio de aflição mundial, a vinda gloriosa de Cristo, a derrota do ímpio e então o estabelecimento do Reino Milenar. Para Irineu, esse reino é o cumprimento da promessa feita a Abraão, uma renovação da criação e o descanso sabático da humanidade redimida. A clareza com que Irineu relaciona o retorno de Cristo ao início do milênio é uma das bases mais fortes do pré-milenismo histórico.
Também Tertuliano, uma das mentes mais brilhantes do cristianismo primitivo, ensina o mesmo. Em Contra Marcião, ele afirma abertamente que existe um reino prometido na terra, que acontecerá após a ressurreição e que durará mil anos. Já Lactâncio, chamado de “o Cícero cristão”, apresenta uma descrição semelhante em suas Instituições Divinas, retratando Cristo reinando entre os homens durante o milênio e julgando as nações com justiça. A partir desses testemunhos, torna-se evidente que a crença no reinado milenar literal não era novidade tardia, mas um pilar fundamental da fé cristã dos primeiros séculos.
Se o pré-milenismo aparece com abundância na literatura antiga, o pré-tribulacionismo surge de forma mais sutil, mas perceptível. Embora nenhum autor primitivo apresente um sistema formal como conhecemos hoje, encontramos elementos doutrinários que se alinham com a ideia de um arrebatamento prévio, especialmente a distinção entre a Igreja e o mundo durante os juízos finais, o livramento dos santos da ira e a noção de que Deus recolherá Seus fiéis antes da tribulação que há de vir.
Um dos testemunhos mais interessantes aparece em O Pastor de Hermas, obra do início do século II muito apreciada entre os cristãos antigos. Em uma de suas visões, o autor declara que os fiéis, se permanecerem firmes e preparados, “escaparão dos males futuros”. Esse “escape” é interpretado por vários estudiosos como uma referência a um livramento divino antes dos juízos descritos no Apocalipse, um conceito que ecoa diretamente na doutrina pré-tribulacionista posterior.
Outro autor que reforça esse entendimento é Cipriano de Cartago, do século III. Em seu tratado Sobre a Mortalidade, Cipriano utiliza uma linguagem surpreendentemente alinhada com o princípio do arrebatamento antes da ira. Ele afirma que Deus chama Seus justos antes que venham as tempestades de juízo sobre o mundo, livrando-os dos males que se aproximam. É impressionante como suas palavras ressoam com a noção de que a Igreja não foi destinada à ira, como afirma a teologia pré-tribulacionista contemporânea.
Um testemunho ainda mais explícito aparece no sermão atribuído a Efraim, o Sírio (século IV), intitulado Sobre os Últimos Tempos. Nesse texto, encontramos a declaração: “Todos os santos e eleitos de Deus serão reunidos antes da tribulação que está por vir, e serão levados para o Senhor para que não vejam o caos que dominará o mundo”. Embora existam debates acadêmicos sobre os manuscritos, este sermão é um dos registros antigos mais próximos da doutrina do arrebatamento pré-tribulação, apresentando de forma clara a sequência: reunião dos santos → tribulação → juízo.
Também podemos mencionar Victorino de Petavo, autor do primeiro comentário completo do Apocalipse. Ao comentar 6.14, Victorino afirma que a Igreja será retirada antes da confusão que inundará o mundo, mostrando que, para ele, há uma distinção entre os fiéis e aqueles que permanecerão para enfrentar os juízos.
Somando esses testemunhos, percebemos que a igreja primitiva:
– cria em um milênio literal e terreno, inaugurado com a volta de Cristo;
– aguardava o surgimento literal do Anticristo antes da segunda vinda;
– interpretava a profecia de modo cronológico, não alegórico;
– enxergava um livramento dos fiéis antes da manifestação plena da ira divina;
– distinguia a Igreja dos juízos executados sobre o mundo;
– nutria expectativa de um retorno iminente de Cristo.
Esses elementos, juntos, mostram que as raízes do pré-milenismo e do pré-tribulacionismo estão muito antes da Idade Média. Embora não tenham sido sistematizados com a mesma terminologia atual, o pensamento que sustenta essas doutrinas estava vivo e bem estabelecido entre os primeiros cristãos. Isso desmonta a ideia muito comum de que tais crenças seriam “invenções modernas”. A verdade histórica é que a igreja primitiva interpretava as profecias de forma literal, esperava um reino terreno futuro, e muitos de seus autores entendiam que Deus livraria Seus santos antes da ira final.
Portanto, ao retomarmos os escritos antigos, percebemos que nossa geração não está apenas estudando escatologia; está redescobrindo uma herança deixada pelos primeiros seguidores de Cristo. Uma herança que aponta para a bendita esperança: o retorno iminente do Senhor, o livramento de Seu povo e o estabelecimento de Seu reino eterno.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
– Eusébio de Cesareia. História Eclesiástica. Livro 3, capítulo 39.
Edições recomendadas:
• Nicene and Post-Nicene Fathers, vol. 1.
• Traduções em português: Paulus; CPAD.
– Justino, o Mártir. Diálogo com Trifo. Capítulo 80.
Edições recomendadas:
• Ante-Nicene Fathers, vol. 1.
• Ed. Paulus, São Paulo.
– Irineu de Lião. Contra Heresias. Livro 5, caps. 32–33.
Edições recomendadas:
• Ante-Nicene Fathers, vol. 1.
• Ed. Paulus: Contra as Heresias, 2 volumes.
– Tertuliano. Contra Marcião. Livro 3, cap. 25.
Edições recomendadas:
• Ante-Nicene Fathers, vol. 3.
– Lactâncio. Instituições Divinas. Livro 7, caps. 14 e 24.
Edições recomendadas:
• Ante-Nicene Fathers, vol. 7.
– O Pastor de Hermas. Visão 1.
Edições recomendadas:
• Ante-Nicene Fathers, vol. 2.
• Ed. Paulus.
– Cipriano de Cartago. De Mortalitate (Sobre a Mortalidade), seção 26.
Edições recomendadas:
• Ante-Nicene Fathers, vol. 5.
– Pseudo-Efraim. Sermon on the Last Times (Sobre os Últimos Tempos), seção 2.
Edições recomendadas:
• Presente em coleções patristicas pré-nicenas.
– Victorino de Petavo. Comentário ao Apocalipse, sobre Ap 6.14.
Edições recomendadas:
• Ante-Nicene Fathers, vol. 7.
– Didaquê. Capítulo 16.1.
Edições recomendadas:
• The Apostolic Fathers, ed. Michael W. Holmes.
• Tradução em português: Editora Paulus; Mundo Cristão.
0 Comentários